[Resenha] A Viagem de Chihiro

  FICHA TÉCNICA

Título: A Viagem de Chihiro, [em PT-BR] (‘Chihiro no Kamikakushi’ lit; O desaparecimento/ocultação de Chihiro, em Japonês).

Autor: Hayao Miyazaki

Ano de Publicação: 2001

Duração do Filme: duas horas e cinco minutos (2h5min).

Faixa Etária: a partir dos 10 anos.

    Sinopse de A Viagem de Chihiro

    A Viagem de Chihiro é um filme de fantasia e aventura criado pelo japonês Hayao Miyazaki, marcou minha infância e me apresentou ao Studio Ghibli. Eu tinha menos de 10 anos quando me deparei com esse filme nas prateleiras da locadora [quando ainda existiam locadoras físicas], pedi para minha mãe levar e foi amor à primeira vista, tanto que depois de tanto alugá-lo tiveram que comprar o DVD para se pouparem de ter que alugar semana sim, semana não.

A capa que me chamou a atenção na locadora!

    Não fui a única que se apaixonou por esse filme, saiba que ganhou as bilheterias japonesas tendo mais sucesso que Titanic lá na Terra do Sol Nascente, mas também foi bem quisto no resto do mundo e ajudou a dar aos filmes japoneses maior visibilidade: tanto que ganhou a estatueta de Melhor Animação no Oscar [derrotando “Spirit: O Corcel Indomável” e “Lilo e Stitch”, ambos muito bons também], além de ter conseguido muitos outros prêmios ao redor do mundo.

    Mas se você está se perguntando “Sobre o que é esse enredo que te fascinou tanto quando criança?”, aqui vai:

    “Chihiro é uma menina de 10 anos descontente com a mudança da família [pai, mãe e ela] para outra cidade. Ao tentar chegar ao novo lar, o trio se perde nas redondezas do bairro e acaba encontrando um local que se acredita estar abandonado, mas onde imediatamente encontram comida recém preparada. Chihiro é a única que está desconfortável com a estranheza de tudo e tenta, com medo, convencer os pais a deixarem o lugar...

    …Apesar dos apelos da menina, seus pais não se compadecem e acreditam que podem usufruir de tudo e qualquer coisa porque possuem dinheiro para pagar. Mas tudo desanda quando, na verdade, descobre-se que entraram acidentalmente em um outro mundo, paralelo ao deles, onde os pais da menina são punidos por comerem alimentos que não lhes eram destinados. É dessa forma que, como num sonho [num pesadelo, melhor dizendo], Chihiro fica sozinha neste novo mundo, onde deverá encontrar coragem, sabedoria e determinação para sobreviver e salvar seus pais. Felizmente, ela descobre que não está sozinha e faz bons amigos que a auxiliarão nessa jornada”.

- Sinopse de A Viagem de Chihiro

    Por que assistir A Viagem de Chihiro?

    Transcorrido nem 20 minutos de tela e você logo pensa que está assistindo algo demasiadamente louco e totalmente sem sentido, de alguém que julgas ter fumado alguma coisa quando criou o enredo, se pergunta por que decidiu assistir a este filme que literalmente lhe parece uma “viagem”, você já estará pensando ‘a pessoa quando criou esse roteiro devia estar sob uso de drogas alucinógenas’. Esse pensamento ocorre com quase todos que assistem, então é possível que lhe aconteça também, mas não se assuste...

    Para responder às suas, futuras e inevitáveis, dúvidas: deixe-me explicar por que esse filme é tão especial e conquistou fãs de todas as idades ao longo dos anos desde seu lançamento...

    Para entender a trama é preciso saber que esse mundo ‘paralelo ao nosso’ em que Chihiro se encontra é uma espécie de ‘mundo espiritual’ que é mágico e encantado, onde deuses e outros seres, como antigos espíritos [de rios, florestas, etc,], bem como outros diversos tipos de criaturas e animais bisonhos habitam. Mas embora isto pareça estranho à primeira vista, eu sei que parece, no fim este mundo que a protagonista passa a habitar rapidamente começa a assemelhar-se ao nosso em muitos outros aspectos; vou lhe apresentar um dos mais importantes...

    O mundo possui estabelecimentos, que possuem seus respectivos donos e, obviamente, possuem empregados. Para sobreviver nesse mundo a protagonista é informada que precisa arrumar um trabalho, sendo recomendada a uma Casa de Banho por um personagem que se chama Haku e que, misteriosamente, a ajuda a conseguir um emprego ali sob a alegação de que já a conhece [terá de assistir para descobrir como e porque ele a ajuda, não darei spoilers]. 

Chihiro parada frente a um estabelecimento comercial

    Então, em síntese; Chihiro logo descobre que terá que trabalhar para sobreviver. Viu só? Eu disse, não é sonho e sim um pesadelo, passando as primeiras impressões, esse novo mundo logo se mostra muito parecido com o nosso. Logo percebemos que;

1) A estrutura socioeconômica ali também gira entorno do lucro como algo a ser obtido, aqueles que frequentam a Casa de Banho [deuses e espíritos que vão lá para “descansar os ossos”] pagam com ouro e/ou outras riquezas e/ou benefícios, enquanto a dona do estabelecimento gerencia seus negocio e coordena seus empregados. Onde Chihiro é apenas mais um peão.

2) Não é um mundo para todos, ainda que os pais de Chihiro tivessem grana e cartões de crédito, ou seja, tinham dinheiro para pagar pelo que consumiram; eles não eram bem-vindos e o que tinham para oferecer não era suficiente para tirá-los da enrascada de comer o que era para outrem sem autorização. Fica claro que esse é um mundo que tem regras, não conhecê-las e/ou não segui-las acarreta em problemas. E considerando que a protagonista tem apenas 10 anos, esse mundo não tem nenhuma regra contra o trabalho infantil, pelo visto.

    O mundo em que Chihiro entra é um mundo que tem suas próprias regras de conduta, as quais ela vai começar a aprender cotidianamente, onde as pessoas tem seus lugares a depender de quem são e em que posição estão, é um mundo onde ela deve ter um emprego e ocupar-se para sobreviver, onde ela deve ter responsabilidades e tomar decisões pertinentes (a) ao trabalho que esta fazendo (b) as pessoas que estão no entorno dela e (c) ao futuro dela própria e de família. 

O povo ralando de trabalhar!

    É um mundo onde ela deve levantar e trabalhar, fazer o possível a cada dia para melhorar a condição dela, dos amigos ao redor dela, e tentar ajudar os pais como puder. É um mundo que exige isso tudo dela; ainda que ela não esteja pronta e se sinta perdida e sem saber oque fazer, na maioria das vezes. É por isso que Chihiro terá que achar, em si mesma, coragem, sabedoria e determinação para enfrentar as adversidades e tentar descobrir como resolver todos os problemas que encontrar.

    Percebemos então que a trama abordará a mudança de uma fase para outra da vida, representa essa fase estranha da adolescência, que é uma transição da infância à fase adulta, a viagem de Chihiro fala sobre mudança e crescimento.

    Chihiro está em uma situação onde depende de si mesma, não possui seus pais para ajudá-la, deve conseguir um trabalho e adquire diversas responsabilidades no processo, dentre as quais, tentar ajudar os pais como puder, visto que eles passam a depender dela. Reparou que as questões que passam a rondar a protagonista são questões que adolescentes, jovens e adultos terão que enfrentar algum dia?

    Mas não é só isso, um notável desenvolvimento de enredo nos mostra que o filme não apenas usará a protagonista como intermédio para ensinar uma lição a nós, mas também usa diversos personagens para nos fazer refletir.

    Personagens que fazem A Viajem de Chihiro tão especial

    Em relação a esses personagens notáveis que nos ajudam a entender a mensagem do filme, serei breve para não dar spoilers, direi resumidamente quem são [sem por imagens para quando você assistir ir descobrindo quem é quem por si mesmo];

    Yubaba, a gananciosa e temida dona de uma prestigiada Casa de Banhos, mas não só; ela também é uma feiticeira/bruxa poderosa. Descobrimos que ela explora os seus trabalhadores roubando-lhes os nomes, fazendo com que se esqueçam de quem são para que fiquem ali a trabalhar para ela indefinidamente, pois, uma vez roubado o nome eles perdem o senso de identidade...

    ...Curiosamente, isto descreve bem um sistema de trabalho onde as pessoas entram à procura de melhores condições de vida, à procura de uma forma de sobreviver, uma forma de ganhar um pouco de dinheiro, algo que disseram a si mesmos que seria apenas ‘por um tempo’, mas no final, mesmo que não gostem do serviço e do local, ficam por motivos que nem eles conseguem explicar, como se tivessem esquecido de seus propósitos, consequentemente, esquecendo quem são e/ou quem almejavam ser, passando a ser apenas um funcionário qualquer do sistema...

    ...Além disso, Yubaba também é mãe, do tipo que superprotege e mima demais o filho, tratando-o de maneira infantilizada demais, não percebendo que ele já é grandinho. No geral, a personagem parece a vilã, embora, se avaliarmos com cuidado, ela é apenas uma mulher egocêntrica e ambiciosa que só tem em mente os próprios interesses.

    Haku, um espírito antigo que, após ter seu papel no mundo físico/real eliminado [é preciso assistir ao filme para entender o que ele é], não tendo mais função, não tendo mais o que fazer com seu tempo, se encantou pelas artes da magia e feitiçaria e decidiu se esforçar e aprendê-la, por isso se tornou aluno de Yubaba. No final ele também acaba consumido pelo trabalho e esquece quem é, seu nome é roubado pela feiticeira, tendo que servi-la mesmo quando a tarefa é ilícita. Mas tudo isso muda quando ele revê Chihiro.

    Lin e Kamaji, funcionários de Yubaba que, assim como Haku, inicialmente parecem bruscos e rabugentos, mas que na verdade se mostram amigáveis a longo prazo. Ambos também desejam, um dia, deixar a Casa de Banho. Fica claro que o dia-a-dia e as relações de trabalho os consomem e fazem-nos parecer mais rígidos as vezes, quando, no fundo de seus corações, não são assim, são boas pessoas que gostam de ajudar o próximo. Mostra que as relações e ambiente de trabalho podem mudar uma pessoa e/ou fazerem-nas adotar uma persona mais ‘durona’ para enfrentar o cotidiano, como um mecanismo de defesa, uma forma de enfrentamento.

    Sem-Rosto, um espírito bizarro que não possui rosto, nem voz, muito menos personalidade, portanto rouba a personalidade e a ‘vibração’ do local onde está. Sendo assim, se estiver num lugar muito competitivo e com gente gananciosa, como a Casa de Banho, adquire tais inclinações. O personagem é uma representação daqueles que apenas espelham o comportamento dos outros, sem possuir realmente originalidade e senso crítico próprios. Ele se torna o que as outras pessoas ao seu redor são, seu objetivo é (a) ser como elas, ou (b) dar o que os outros ao seu redor desejam/querem. Quantas vezes já fomos ou conhecemos uma pessoa “sem-rosto” nesta vida?

    O bebê (cujo nome real é Boh), filho de Yubaba, já é um rapazinho grande (literalmente), mas que devido a superproteção da mãe nunca explorou o mundo para além de seu quarto. Isso afetou o desenvolvimento da capacidade de independência dele, tornando-o uma criança mimada, birrenta e teimosa. O excesso de proteção da mãe e tendência dela de tratá-lo como um bebê pequeno faz com que ele sequer saiba andar por suas próprias pernas (ou pelo menos é isso que a mãe dele pensa). Porém, um encontro imprevisível com Chihiro fará com que o bebezão mude, como e se para melhor ou pior? Será que ele alcançará autonomia e liberdade para si? Terá que assistir.

    Zeniba; irmã gêmea idêntica de Yubaba, também é uma feiticeira/bruxa, ambas parecem ter um relacionamento tumultuado e estilos de vida completamente diferentes. Ambas provam que a personalidade pode se desenvolver de forma completamente diferente de uma pessoa para a outra, mesmo tratando-se de irmãos que tiveram o mesmo tipo de criação, pois cada um de nós só criamos a “imagem” de quem somos em termos de personalidade a partir das muitas experiências individuais que tivemos ao longo do nosso desenvolvimento e da vida, a depender da forma como valoramos cada uma dessas experiências...

    ...Todo esse processo de determinar “quem somos” inicia-se na infância, marca a adolescência e se aprimora na idade adulta. Assim, de acordo com a imagem que o indivíduo faz de si mesmo, pode escolher os comportamentos mais coerentes com o que pensa/quer ser. A questão aqui é, será Zeniba amiga ou inimiga da nossa protagonista? Terá que assistir para saber.

  MAIS CONSIDERAÇÕES INTERESSANTES

    1) O filme, apesar de tudo, não trás a necessidade de crescer apenas como um marco necessário, mas também como uma fase de ganhos e perdas.

    2) Evidentemente Chihiro aprende mais sobre si mesma e sua resiliência e coragem frente as adversidades, mas, num mundo permeado de características adultas, por outro lado, vamos ser expostos a uma característica bem marcante da infância; a inocência... 

    ...Chihiro é a personagem central mais nova da trama [se você desconsiderar Boh] e, embora o objetivo do enredo seja a entrada no mundo pré-adolescente e exposição das demandas da futura fase adulta que um dia virá, a protagonista é ainda uma jovem alma; portanto é a menos gananciosa (ela não liga para dinheiro ou riquezas, não entende a necessidade de tais coisas), ela também é a mais leal e simples de coração, seja aprendendo coisas novas, seja perdoando aqueles que outrora pareciam a querer mal, seja fazendo amigos e ajudando como pode, ela é altruísta, divide as coisas boas que possui mesmo que possa lhe faltar, é capaz de mudar seu caminho desde que seja para ajudar outras pessoas, também não tem medo de expressar e expor abertamente todos os sentimentos que tem, sejam eles de tristeza ou felicidade. 

    O filme mostra uma menina amadurecendo e aprendendo as demandas da vida, mas sem ter perdido ainda a pureza infantil.

    3) Além disso, este filme me rendeu um dos meus primeiros ships da vida; Chihiro e Haku. Este é outro aspecto do filme que o torna interessante, na minha opinião, o enredo também aborda o tema “primeiro amor” e os sentimentos inocentes de carinho e lealdade para com o alvo dessa afeição (outra característica marcante da entrada na adolescência, não é? Não podia faltar).

    Alguns podem achar isso impraticável, visto que a protagonista tem 10 anos e, Haku e ela, são pertencentes a mundos diferentes, porém acho inegável; ocorre ali uma relação de carinho e afeto mútuo, mesmo que esse amor pareça ser impossível a longo prazo. Antes de alguém dar piti pela idade dela, preciso salientar também que, se tratando de uma protagonista tão jovem, esse amor é retratado na tela de forma bastante ingenua e pura.

    4) E quando você pensa que acabou, percebe aqui e ali que há críticas ao capitalismo, ao uso desenfreado de bens de consumo supérfluos, bem como críticas a degradação, deturpação e poluição de rios, [meio ambiente em geral, mas fica mais evidente em relação aos rios].

    Enfim, como você pode notar, é um filme que possui MUITAS camadas, obviamente só fui reparando cada uma delas conforme assistia e reassistia múltiplas vezes ao longo da vida. Mas espero que essa resenha te ajude, que você aperte no play sem estar totalmente cru, não tendo que assistir tantas vezes quanto eu para compreender as mensagens gerais da trama.

    PONTOS NEGATIVOS

    1) O próprio nome do filme em japonês faz mais sentido que em português, pois o título pode ser facilmente compreendido na Terra do Sol Nascente como “Chihiro Escondida pelos Espíritos”, ao invés da tradução literal sendo ‘O Desaparecimento/ocultação de Chihiro’. De todo modo, nenhum dos dois títulos advindos do japonês iria colar, ambos soam ruins como título de filme infantojuvenil [o que os pais no Brasil iriam pensar, né?], daí aqui nas Terras Tupiniquins colocarem “A Viagem de Chihiro” mesmo.

    O nome do filme em japonês ainda faz referência a uma crendice popular em vilarejos japoneses de que, se uma criança desaparecia, era porque foi ocultada pelos espíritos/deuses [embora, no filme, tanto Chihiro quanto seus pais sejam levados para esse ‘outro mundo’, portanto, o trio é ocultado pelos espíritos]. É por isso que se alguma coisa parece não ficar muito bem explicada no filme, sobre onde eles estão e que lugar bizarro é aquele onde eles vão parar, ocorre apenas por conta de problemas de barreiras culturais entre Brasil e Japão, que fazem-nos perder algumas referências…

    …Isso para mim é um ponto negativo significativo, dado que muitos brasileiros que assistem ficam sem compreender direito essa questão. Da mesma maneira como as Casas de Banho públicas do Japão [chamadas de Sento] fazem parte da cultura e história japonesa e possui tradição secular, mas parece um conceito bem estranho para nós (seja o lado "zen" dessas casas, onde se vai realmente para se banhar, seja o lado paralelo e mais obscuro de algumas dessas casas que funcionavam como bordéis disfarçados quando uma lei contra a prostituição foi aprovada do Japão [evidentemente não devemos generalizar, mas fica aí o aspecto do filme que alguns dizem ser também uma crítica implícita a exploração sexual, já que nem todos os negócios de Yubaba eram lícitos e alguns de seus funcionários pareciam determinados a fazer qualquer coisa por um pouco mais de grana]).

    2) Outra coisa que desgostei um pouco é que, ao rever o filme para fazer esta resenha, descobri que ele foi redublado. Não é nada que atrapalhe ou modifique a compreensão geral, mas acabei sentindo falta da dublagem antiga [considerem isso apenas um saudosismo meu, nada que vá realmente afetar a compreensão da obra].

  

  CONCLUSÃO

    Bem, agora já sabes um pouquinho mais do porque eu fiquei fascinada com esse filme, além do fato da animação ser espetacular. Por estas razões o achei tão icônico e marcante. Que eu tenha amado esse filme, tanto pela mensagem quanto pela animação, acredito que já deixei transparecer bastante, é inegável, hoje guardo-o no meu coração...

    ...Mas agora que você chegou ao fim dessa publicação, resta saber se ficou curioso(a). Que será que aconteceu com Chihiro no fim do filme? Será que ela conseguiu superar todas as adversidades? Quantos amigos e inimigos ela colecionou ao longo da viagem? Ela conseguiu ajudar os pais?

    Então, já tinha visto esse filme antes? Se sim, já tinha reparado nos detalhes que mencionei? Pretende rever? E se não viu, pretende ver?

    Fica aí a dica para quem está procurando um filme de animação bem diferentão!

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