[RESENHA] A Metamorfose

A Metamorfose de Franz Kafka. Alienação do trabalho. Capacitismo. Gregor Samsa. Inseto. Análise de livro.

   [RESENHA] A Metamorfose

Ficha Técnica

Título: A Metamorfose

Autor: Franz Kafka

Ano de Publicação: 1915

Páginas: 100 (aprox. a depender da edição)

 

Essa resenha não possui spoilers 

 

    Sinopse de A Metamorfose de Franz Kafka


    Numa certa manhã, Gregor Samsa acorda metamorfoseado num inseto monstruoso. Apesar disto, Gregor inicialmente não se preocupa com sua transformação, mas sim com o fato de estar atrasado para o trabalho, afinal ele era um caixeiro viajante que abandonou as suas vontades e desejos pessoais para sustentar a família e pagar a dívida dos pais. Mas que será dele agora?

 

A Metamorfose de Franz Kafka. Alienação do trabalho. Capacitismo. Gregor Samsa. Inseto. Análise de livro.

O autor, Franz Kafka

    Por Que Ler Este Livro?


    Acha que era só um livro esquisito onde o protagonista se transforma num inseto repulsivo? Pois bem, perceba isso: É uma parábola psicológica sobre trabalho e o papel dos indivíduos na sociedade.

 

    Gregor Samsa consiste numa alegoria de alguém que não tem outro meio de subsistência senão sua força de trabalho, que vende para sobreviver. E o que ele consegue é pagar as dívidas da família e criar melhores condições de vida para sua mãe, pai e irmã, enquanto o maior lucro e acúmulo de riqueza vai para seu patrão burguês. Neste livro, para Gregor, o trabalho não se destina ao prazer e à satisfação pessoal, mas sim a um dever a ser assumido.

 

A Metamorfose de Franz Kafka. Alienação do trabalho. Capacitismo. Gregor Samsa. Inseto. Análise de livro.

Tripalium = Trabalho

    Isso me lembrou que a palavra "trabalho" vem de "tripalium", objeto de tortura. Percebi que muitas vezes a sociedade contribui para reafirmar os valores dominantes de exaltação à trabalhos que, em realidade, só provocam estranhamento e até absoluta amargura naquele que trabalha. Gregor detestava o que fazia, odiava o chefe, mas mesmo assim submetia-se a isso, tinha medo de se atrasar e ser repreendido, temia ser demitido, estava sempre ansioso e sob pressão, e nem mesmo se divertia em seu tempo livre. Ele vivia para trabalhar e descansar, nas horas vagas, devido a exaustão do ofício.

 

    O livro nos lembra que vivemos num sistema socioeconômico onde ser útil e produtivo é parte central do nosso viver. É uma sociedade que vê o trabalho como pilar estruturador da vida: do qual cada um reafirma o seu sentido de adequação, fazendo com que as pessoas se considerem eficientes. E este livro nos faz pensar sobre como o trabalho é organizado e por que é organizado dessa forma em nossas mentes.

 

    A classe mais baixa deve submeter-se à “burguesia” como Gregor submetia-se à firma? E que todos sejamos indubitavelmente úteis e produtivos? Para benefício de quem? Os pensamentos de opressão de Gregor em relação ao trabalho, e sobre perder o trabalho, são normais?

Se não me contivesse, por causa dos meus pais, teria pedido demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo do coração. Ele iria cair da sua banca! 

- A Metamorfose, Franz Kafka 


    Esse livro me fez problematizar nossas relações com o trabalho no mundo atual, uma certa manipulação de massa, por intermédio dos meios de comunicação e cultura, que apresentam o trabalho como fenômeno natural que deve ser desejável, utilizando mecanismos ideológicos [sejam eles religiosos ou laicos] para reiterar essa ideia. Não quero questionar aqui se o trabalho “dignifica o homem” ou não, mas sim questionar; qual trabalho? E por quê?

O que o mundo exigia de gente pobre, eles cumpriam até o ponto extremo.

- Franz Kafka


    É impossível não levar em conta a disparidade, o contraste, de oferta e de condições de vida e de salubridade oferecidas a pessoas de classes sociais diferentes. E que, em geral, isso vem de legado sociohistórico, uma espécie de permanência do passado no presente; não há mais escravidão, mas ainda se espera postura servil e dócil daqueles de classes mais baixa, que devem se submeter ao trabalho e aqueles que lá estão em cargos hierárquicos mais altos, ainda que lhe seja desgastante, insalubre para saúde física e mental, com horas de serviço extenuantes, pouco retorno financeiro para todo trabalho executado, pouca consideração [de pessoas em cargos de chefia] nos casos de sofrimento pessoal dos empregados, em função do trabalho. 

 

    Este tipo de trabalho é oque dignifica o homem? Que tipo de “dignidade” é essa que oprime o homem? O que vemos nesse livro não é um trabalho que dignifica, mas uma alienação do trabalho. Teria sido a metamorfose inicial de Gregor um efeito colateral de viver num sistema tão nefasto?

 

    Mas calma, que o livro ainda consegue ser bem mais profundo que isso...

  O que Faz Esse Livro tão Especial?


    Mas e se você não pudesse mais desempenhar esse papel? E se você não fosse mais útil e produtivo? E se não fosse mais desejado pela comunidade e pela família? E se essas palavras ofensivas se aplicarem a você: acomodado ("quem quer arruma um jeito", não é oque dizem?), preguiçoso, tá se vitimizando, vagabundo. Ou, é um pobre coitado, um estorvo, um paria, dependente, tadinho não pediu pra ficar ficar assim não. E quando você é indesejado, um miserável, insignificante, um inseto. ???

 

    O protagonista foi de fato transformado em inseto, mas “inseto” também pode ser entendido metaforicamente. Gregor poderia ser qualquer trabalhador que sofre abruptamente de uma doença grave (em relação a sua saúde física tanto quanto mental) e deixa de sustentar a família, perde o propósito que lhe dava o sentimento de pertencimento à família e ao núcleo social.

Sempre que a conversa chegava a essa necessidade de se ganhar dinheiro, Gregor saía dali e se jogava no frio sofá de couro que se encontrava ao lado da porta, pois ardia de constrangimento e de tristeza.
 - A Metamorfose, Franz Kafka

    Vemos uma metamorfose, não só em Gregor, e não só dá sociedade para com ele [quem realmente se importou em visitá-lo e oferecer ajuda quando ele sumiu do convívio social?], mas também vemos uma metamorfose da família. Ninguém pensa que vale a pena olhar para Gregor, nem mesmo estar na mesma sala que ele, nem que seja só para lhe fazer companhia. No início a família fica assustada e amedrontada, depois fica com um pouco de pena e alguns membros se compadecem dele, depois se preocupam com quem vai sustentar a família agora que ele não pode, e depois que encontram outra forma de subsistência, Gregor se torna um fardo. 

 

    Para mim o mais marcante é que Gregor perde, principalmente, a autonomia. Pois seu físico impacta na percepção que os outros tem dele, que assumem que a condição corporal dele é algo que, naturalmente, o define como menos capaz. Mas será isso uma verdade mesmo? 

A Metamorfose de Franz Kafka. Alienação do trabalho. Capacitismo. Gregor Samsa. Inseto. Análise de livro.

    Gregor acaba por representar qualquer pessoa que, por limitações físicas, é vitima do capacitismo. A família está convencida de que ele não pode realizar coisa alguma, nem decidir qualquer coisa por si mesmo, quando na verdade são eles próprios que impõe barreiras a Gregor.

 

    E é claro que o trabalho tem tudo a ver com isso, pois historicamente, há um forte pressuposto [errôneo] de que Pessoas com Deficiência (PcD) não são aptas para o mercado de trabalho...

 

    É por isso que é tão interessante ver que, apesar de ter acordado metamorfoseado num inseto, isso não preocupou Gregor por si mesmo, não inicialmente. Ele não tinha aquela forma física como “um problema” em si. Mas isso só passou a ser “um problema” pela maneira como os outros viam-no. Só passou a ser “um problema”, de fato, quando as pessoas julgaram-no pelo que elas supunham que ele “não podia fazer com aquela forma”, não importando se ele estava realmente disposto e determinado a tentar levantar da cama, sair do quarto e fazer algo, da maneira como conseguisse.

 

    É impossível, para mim, ler esse livro e não lembrar da marginalização histórica de pessoas com deficiência, que muitas vezes estão lutando para ter direitos básicos, lutando contra o descaso, contra a indigência, contra a repulsa dos outras em relação a elas, contra a segregação, contra a negligencia, lutando por espaços onde possam viver como qualquer outra pessoa, lutando por dignidade, por representatividade, por inclusão. Porque ser como “um inseto” ninguém merece.

A Metamorfose de Franz Kafka. Alienação do trabalho. Capacitismo. Gregor Samsa. Inseto. Análise de livro.

    Mas isso não ocorre com Gregor, sua casa [seu quarto] passa apenas a ser um local de penúria, pois seus próprios familiares o retiram do convívio social para o isolamento. O cômodo, onde ele é forçado a se esconder do mundo, o assombra e se torna sua prisão. Ele está sozinho. E ninguém se importa depois de transcorrido tanto tempo, porque acham que ele não tem mais nada para oferecer a ninguém. E ninguém se importa se ELE precisa que lhe ofereçam algo: nem que fosse carinho e atenção.

 

    E a forma como essas coisas abalam Gregor também causa uma metamorfose nele, uma outra ainda mais chocante que a metamorfose física. Porque ele percebe, então, como a sociedade é egoísta, gananciosa e individualista. Ele perde completamente a esperança quando percebe que até a própria família não o apoiará e o tratará mal; vemos a metamorfose de um homem que, se antes queria ajudar a sustentar a família por amor a eles, agora esses sentimentos de afeto dele vão apodrecendo dentro dele com o tempo. Ele deixa de se importar com os outros, porque percebe que os outros não se importam com ele.

  O Que Achei?


    Um dia, pode ser amanhã ou daqui a 50 anos, mais um dia ou menos dia, poderemos ser afetados por uma doença ou apenas envelhecer [pois, embora envelhecer não seja doença, há potencialmente maior risco de comorbidades correlacionadas com a idade]. Ambas as coisas tem tudo haver com esse livro porque seja doença [físicas e/ou psicológicas] em qualquer idade, seja velhice, não somos imunes a nenhum dos dois. E ambas fazem-nos passar por mudanças biopsicossociais. 

 

    Ambas, doença e velhice, abalam nosso senso de autoestima, nossa competitividade em relação aos demais, nossa relação com o trabalho, e nossa forma de ver o mundo, impactando em boa medida também nossa independência e autonomia. Isso tudo pode gerar insatisfação perceptível com a vida, que naturalmente encurta por doenças físicas correlacionadas com as mentais, como a depressão, a ansiedade e o estresse. 

 

    É isso que vemos com Gregor Samsa durante o livro

A Metamorfose de Franz Kafka. Alienação do trabalho. Capacitismo. Gregor Samsa. Inseto. Análise de livro.

Ser diferente impacta a vida de forma biológica, psicológica e social

    Seja o que for: quando deixarmos de ser úteis e produtivos, como a sociedade nos verá? Quem irá nos querer? Quem nos amará quando nos tornarmos nada mais do que um estorvo para esta sociedade que só se preocupa com sucesso e lucro?

 

    Como nos tratarão quando nos tornarmos meros insetos como Gregor Samsa? Quando não passarmos de um corpo duro asqueroso com membros frágeis e tremulantes, deitados numa cama olhando para o teto, sem forças para fazermos muito sozinhos, como será?

 

    Ou você acha que estamos construindo uma sociedade que nos dará um destino diferente do de Gregor Samsa? Quando nem a sociedade (e nem a família) precisar mais de você, você acha que se importarão com o fato de você precisar deles? O que você dá hoje, receberá amanha? Será mesmo que nós colhemos oque plantamos?

 

    Você não percebeu ainda que estamos todos fadados e rumando à metamorfose?

A Metamorfose de Franz Kafka. Alienação do trabalho. Capacitismo. Gregor Samsa. Inseto. Análise de livro.
 

    Esse livro acabou comigo, mas justamente porque a crítica dele é muito necessária, e por isso amei. É um soco no estômago, mas é a verdade. Desde o primeiro capítulo já não via Gregor como um inseto de verdade, mas alguém acometido por grande moléstia/doença, deformidade, deficiência (palavra bem sugestiva, deficiência em quê e em relação comparativa a quem e sob quais parâmetros?), ou mesmo pensei em idosos (que passam a vida trabalhando e quando envelhecem para além de 80, a sociedade e família trata como estorvo), substituindo o elemento de estranheza do livro (o fato dele virar um inseto, palavra bem sugestiva também para qualquer um à margem da sociedade) o livro expõe uma realidade triste.

    Conclusão

    A Metamorfose é uma brilhante crítica social, centrando toda a sua discussão em reflexões filosóficas sobre nossas relações familiares [e com a sociedade do modo geral], bem como tais relações permeiam o mundo do trabalho. Expõe de forma estupenda temas como solidão, abandono e negligencia. De fato, merece ser um clássico da literatura mundial.

 

    A pessoa se desgasta de trabalhar. E quando não é mais útil, se torna um inseto que a sociedade pode pisar. Esta sociedade negligencia o sofrimento, banaliza a falta de saúde física e, principalmente, a mental [trata como "mi mi mi"] mesmo quando o trabalhador ainda está trabalhando, mas o pior vem depois; quando você está à margem da sociedade e é tido como um inseto. 

 

    É um livro que faz pensar sobre relações familiares, obrigações, papéis sociais e profissionais, bem como a maneira como lidamos conosco e com os outros que, quando não se atinge aquilo que a sociedade espera ou já não é tido como útil, é submetido à desvalorização social, em relação a essas temáticas; Pode um ser humano tratar outro ser humano como um item danificado, defasado, obsoleto? A vida humana pode ser objetificada assim?

 

    Vale muito a pena ler até porque é um livro bem curtinho, e se você já leu, que tal reler agora sob essa perspectiva?


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2 comentários:

  1. Oi Anne, já vi a capa desse livro, mas nunca cheguei a ler ou me inteirar a respeito do assunto tratado. Concordo plenamente com você sobre a importância da leitura e a discussão do tema principalmente da maneira que o mundo está lidando com a produtividade. Temos pessoas que não tem alternativa, ou ficam sem as necessidades básicas, outras que usam a sobrecarga como uma droga para não precisar lidar com angústias pessoais, para no fim todos sermos descartados. Se hoje cuido muito da minha saúde, física e mental, é para tentar não depender de ninguém, porque, num futuro sem meus pais, não tenho com quem contar. Nessas horas eu penso, não seria tão melhor se nenhum de nós tivesse esse medo do abandono?

    Tá aí um livro que teria sido muito interessante de ser trabalhado no ensino médio, com um professor para instruir e abrir os olhos dos alunos enquanto ainda estão bem no começo da vida adulta. Mas, do jeito que o país está se perdendo num negacionismo devastador, não me surpreenderia se proibissem a leitura desse livro também.

    Até breve;
    Te espero nos meus blogs!
    Helaina (Escritora || Blogueira)
    https://hipercriativa.blogspot.com (Livros, filmes e séries)
    https://universo-invisivel.blogspot.com (Contos, crônicas e afins)

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    1. Oi, Helaina, tudo bem?
      É realmente um livro que vale a pena ser abordado com os mais jovens, apesar de que eu não gosto de quando a escola 'obriga' os alunos a lerem. Eu acho mais didático que seja uma leitura conjunta entre educador e alunos, elaborando trechos do livro, sabe? E sem aquela cobrança chata de 'presta atenção, vai cair na prova', ou 'terão que fazer um trabalho sobre isso' (um desabafo meu, haha). Eu acho que deveria ser uma utilização mais verdadeira com o abjetivo de debater mesmo o assunto com os mais jovens, saber oque eles pensam, direcionando a leitura para os fins propícios de reflexão. Então sim, seria ótimo ler esse livro no Ensino Médio, se fosse assim! Eu teria amado a discussão e aprendizado!
      No fim foram os professores que fizeram tais coisas que me ensinaram a refletir sobre as coisas, haha, não os que obrigavam a ler porque 'vai cair na prova'.

      Esse livro eu já imaginava que teria boas reflexões, mas também me surpreendi muito. Vale a pena conhecer.

      Até, agradeço sua visita!
      Beijos

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